quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Diário da Maldade do Mundo

"Um amigo me enviou um link sobre tortura de crianças palestinas por agentes israelenses.

De um link para outro para outro, passei por americanos contaminando gualtemaltecos com sífiles e gonorréia para estudos e cheguei nos bastidores da tortura no Brasil. Poderia ter ido dormir sem entrar em contato com tanta maldade.

Não há lados.
O problema é que não há lados.
O lado de lá do lado de lá é meu próprio lado.

Quando se lê que judeus torturam crianças pelestinas, que americanos fizeram experiências médicas ilegais, que civis brasileiros auxiliaram e acobertaram a tortura de um estado de exceção, você pode assumir algumas dentre diversas posturas:

Você pode se dizer que não quer saber. É covarde, é canalha, mas devo confessar que é meu primeiro sentimento. Eu não preciso ler o Diário da Maldade Humana, ou, se devo lê-lo, para não parecer canalha e covarde, que venha em forma de literatura, de pintura, de Arte.

Você pode simplificar: quem são eles para falar se também o fazem. Ou, pior ainda, justificar: eles o fazem, porque a eles é feito. O que é verdade, claro, mas é uma verdade infinita, cada iniquidade apagando (apagando?!?) outra iniquidade. Por isso a prevalência do ódio, porque é justificado em outro ódio, até que ao fim não há mais nenhum lado errado.Ou você pode saber - os porcos somos nós. Mas atenção, Denise: isto também é uma fuga, um esconder-se. O certo seria: a porca sou eu.

Se todos os lados podem cometer atrocidades, independentemente da ideologia que apregoam, é que o ser humano, cada um deles, é capaz de cometer atrocidades.

"Basta ter experimentado uma vez que é possível ser cego em plena luz e ver no escuro, para levantar a questão da visão. [...] Sim, o olhar percebe mas não escruta, acredita mas não questiona, recebe mas não procura - vazio de desejo, sem fome nem cruzada. [....] E me pergunto se eu mesma vejo bem." (Muriel Barbery, in "A Elegância do Ouriço")."

Uma belíssima personagem, de imensa coragem intelectual e de espiritualidade compassiva íntegra - ao ser esnobada, apagada pelo olhar do outro, ela se pergunta se ela mesma vê bem. Porque o outro sou eu.

O mundo só vai mudar quando eu mudar. Quando for capaz de rejeitar a ação, acolhendo o agente.

Eu só serei capaz de modificar a maldade do mundo quando souber que o ser humano que a produz é minha própria lata de lixo.

É por isso que eu preferiria não saber. Porque sou obrigada a saber que eu, palestina ou judia, estaria impotente, ou impotentemente jogando pedras, ou impotentemente cumprindo a lei, mesmo que, pessoalmente, preze a vidraça ou a infância do outro. Eu, caseira de sítio, receberia os soldados, e teria até um certo orgulho de me gabar na birosca "eram vinte, eram 200, eram 2mil, e deram tiros para todos os lados", até que um dia eu, caseira, talvez me acovardasse ou me envergonhasse ou me sentisse tolhida por um senso deturpado de lealdade aos meus amigos influentes... e não pudesse dizer: "eles matam, eles torturam, eles maculam minhas árvores e meus lagos, minha paisagem pacífica serve à degradação do homem pelo homem, nem sei qual mais degradado."

Eu só serei capaz de modificar a maldade do mundo quando souber que ela é uma maldade não importando quem a produz ou porque é produzida.

Há uma foto que mostra alguém que saltou, ou caiu, ou foi jogado, de uma das Torres Gêmeas para a morte. É uma foto tranquila, bonita, em linhas retas, e exatamente por isso é uma imagem horrível e exasperante de um mundo tortuoso. A irmã de uma das pessoas que pode estar representada na foto manifestou suas dúvidas - sobre a identidade desta pessoa que se aproxima do solo a uma velocidade que aumenta na proporção da gravidade, e sobre o que nela se passou - e terminou seu depoimento dizendo: "E espero que, com essa foto, não tentemos descobrir quem é ele, mas sim quem somos nós.

Não quem são. Quem sou."
Denise Brito

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